Farra das aposentadorias: funcionário é aposentado antes de começar a trabalhar
Um mistério rondou a Assembléia Legislativa de Santa Catarina nos últimos 30 anos e, agora, finalmente parece estar chegando ao fim. Nos anos 80, um surto de doenças raras e graves levou dezenas de funcionários públicos a se aposentarem por invalidez. O que parecia uma maldição era na verdade um escândalo. Veja na reportagem de Kíria Meurer.
Com 63 anos, Gaizito Nuernberg acaba de realizar uma façanha. Aposentado por invalidez, ele conseguiu correr dez quilômetros em apenas uma hora e três minutos.
Fantástico: o senhor tem fôlego para correr uma maratona?
Gaizito Nuernberg: tenho fôlego para correr, sim.
Gaizito era funcionário da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Tinha 34 anos quando foi afastado do trabalho por uma junta médica. O diagnóstico: uma doença cardíaca grave.
Fantástico: o senhor tem problema do coração grave e mesmo assim corre uma maratona?
Gaizito: vocês querem que eu ande de bengala? Querem que eu ande?
“Uma pessoa com cardiopatia grave, ao mínimo esforço, a uma caminhada mais acelerada, ela vai ter cansaço, falta de ar, dor no peito, palpitação. Uma corrida de dez quilômetros, jamais”, afirma o supervisor da perícia médica oficial de Santa Catarina, Nicolau Heuko Filho.
Há dois meses, Gaizito foi convocado pelo Instituto de Previdência de Santa Catarina para uma nova perícia. Na avaliação dos médicos, está tão bem do coração que poderia até voltar ao trabalho.
Os peritos examinaram quase 200 laudos de servidores considerados inválidos pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina, a maioria nos últimos 30 anos. Em 60% dos casos os funcionários públicos não conseguiram provar a doença que deu origem à aposentadoria por invalidez.
Entre eles está Elpídio Ardigó. Ele foi afastado por invalidez em 1982 com o diagnóstico de nefropatia grave, uma doença nos rins.
“A nefropatia grave, no conceito do nosso serviço, é naquele servidor que já está em hemodiálise ou naquele servidor que está evoluindo já para um transplante definitivo”, explica Nicolau Heuko Filho. “Impossível esta pessoa ter cura sem transplante, isso não existe.”
Sem saber que estava sendo gravado, seu Elpídio admitiu que nunca nem chegou perto de uma máquina de hemodiálise. E explicou por que não tem nenhum sintoma da doença.
“Não tem cura. Mas para o meu Deus, não tem nada impossível. Agora não te explico o milagre, não dá para explicar, é mistério de Deus”, diz.
Parece que Jandira Rodrigues também teve uma recuperação milagrosa. Ela foi afastada do serviço público na mesma época que Elpídio e Gaizito. No laudo, uma doença rara e grave: a espondilite anquilosante.
“O portador de espondilite com o tempo vai perdendo a flexibilidade da coluna e da bacia. Com isso, a coluna vai encurvando para a frente e ela vai chegar ao ponto de adotar a posição do esquiador, e com isso ele perde a capacidade da caminhada normal”, afirma Nicolau.
Mas, com uma câmera escondida, gravamos a aposentada andando tranquilamente. A nova perícia atestou que ela tem saúde de sobra para voltar ao trabalho.
“Mas eu não piorei da doença, por que eu não piorei? Eu não posso falar, porque o que eu tenho é uma coisa minha. É a minha fé”, diz Jandira.
Estas histórias fazem parte de um escândalo que provocou uma faxina nos arquivos da Assembleia Legislativa de Santa Catarina. Os documentos revelam que a casa é a campeã nacional de aposentadorias por invalidez. São 46% do total de pensionistas, mais que o dobro da média brasileira de inválidos no serviço público.
Os números levantados pela perícia mostram que houve uma espécie de surto de doenças do coração e dos rins entre os servidores da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, principalmente durante o ano de 1982.
“Nós observamos é que a grande maioria das pessoas, em torno de 90%, jovens, apresentavam doenças que são raras de serem encontradas nessa faixa etária”, conta Nicolau.
Para o deputado que levantou as suspeitas sobre os inválidos os diagnósticos eram escolhidos de propósito porque garantiam vantagens para os aposentados.
“A legislação dá direito a não pagar imposto de renda, aposentar-se sem contribuição previdenciária, aposentadoria com salário integral e a quitarem seus imóveis em caso de financiamento, o que aconteceu com toda certeza nesta casa”, revela o deputado estadual Jaílson Lima (PT-SC).
Alguns trabalharam pouco tempo, menos de cinco anos e saíram de lá com salários que variam entre R$ 2 mil e R$ 24 mil.
O Fantástico teve acesso exclusivo à documentação que coloca sob suspeita de fraude 111 servidores aposentados. Os laudos revelam um festival de irregularidades. Sinais grosseiros de falsificações de assinaturas de um mesmo médico. Atestados sem assinatura, nem CRM - o registro obrigatório no Conselho Regional de Medicina. E mais: cerca de 70% das aposentadorias foram baseadas em atestados feitos por um pediatra.
“A gente sabe que o Conselho Federal de Medicina, o código de ética permite que qualquer médico atue em cada área, mas nós estamos diante de pessoas jovens com cardiopatia grave, com nefropatia grave, atestadas por um pediatra que não fez nenhum exame complementar, o que é muito estranho”, avalia Nicolau
Outro absurdo: bastou um atestado de internação hospitalar para justificar uma aposentadoria por invalidez. O documento tem a assinatura do assistente social Darci Lúcio Vieira, que aparece no laudo de inspeção como "médico".
“Minha profissão é assistente social”, avisa Lúcio Vieira.
A aposentadoria de Paulo José da Silva é ainda mais surpreendente. Documentos mostram que ele foi considerado inválido dia 29 de julho de 1982, um dia antes de começar a trabalhar na Assembleia. Procuramos Paulo José, mas ele não quis falar com a nossa equipe de reportagem.
Com uma câmera escondida, ouvimos a mulher de outro aposentado por invalidez. O marido dela teria uma cardiopatia grave. Mas a mulher desmente. “Na época não tinha nada, depois que com a idade com o passar do tempo, hoje com 64 anos, apareceu um monte de coisa. Não tinha nada de problema de coração”, diz.
Ela conta que os servidores da assembleia recebiam uma espécie de "convite" para se aposentar.
“Até onde eu sei é que iam passando de sala em sala, chamando para perguntar: ‘você tem tanto tempo de serviço, o fulano, o fulano’. Tem uma turma aí, que à época eu acho que, se não me engano, até para botar filho do fulano, filho do cicrano, cargo que tinha para botar. Então quem já tinha um tempinho de casa já tava saindo”, conta a mulher de Ari, aposentado por invalidez.
Elpídio confirma: também teria recebido uma proposta para se aposentar. “Eu não sabia se era por invalidez, eu não sabia se era aposentadoria normal. Eu só perguntei o seguinte: vocês não vão cortar meu dinheiro?”, relata.
“À medida que eles eram convidados para se aposentar, eles eram promovidos salarialmente, que era um incentivo para que se aposentassem e, com isso, se abriam vagas para outros depois também entrarem na festa da Assembleia. Eram apadrinhados”, diz o deputado Jaílson.
Entre os servidores considerados inválidos há pelo menos 16 que não só estavam bem de saúde na época da aposentadoria, como continuam saudáveis até hoje - quase 30 anos depois. Todos eles foram convocados pelo atual presidente da Assembleia Legislativa para voltar ao trabalho.
“Hoje, nós estamos buscando corrigir e dar transparência aos processos que são públicos e precisam ser de conhecimento da sociedade”, afirma o atual presidente da Assembleia Legislativa de Santa Catarina, Gelson Merísio.
A maioria dos convocados conseguiu uma liminar na Justiça para não voltar ao trabalho. Para o advogado de defesa dos aposentados, Pedro Queiroz, depois de 30 anos, nenhum de seus clientes tem obrigação de voltar à assembleia.
“Ele não precisa dizer ‘eu estou curado’. Ele não precisa dizer isso, o prazo é de cinco anos, quem tem que chamar é a casa. Não vamos inverter o jogo”, afirma.
O juiz do Trabalho Carlos Alberto Pereira de Castro diz que não é bem assim. “Aquele prazo, segundo a lei, não se aplica a má fé. O texto diz: o prazo de cinco anos se aplica, salvo em casos de má fé. Nesse caso, me parece bem evidente que, sendo o servidor conhecedor de sua situação de saúde de que ele não estava inválido, consequentemente ele praticou um ato de má fé”, explica.
A farra das aposentarias por invalidez se arrasta há décadas. Foi denunciada pela primeira vez nos anos 1980. Na época ficou conhecida como o "escândalo das muletas". A denúncia já passou pela mão de dois juízes, mas o caso nunca foi resolvido por falta de novas perícias. Só agora, a Assembleia Legislativa decidiu investigar os indícios de fraude. O Instituto de Previdência do Estado também abriu um processo administrativo.
“Se ficar comprovado que houve fraude e má fé do beneficiário, terão uma série de consequências. A primeira delas, por parte do Iprev, vai ser cassar o benefício de aposentadoria, nós vamos parar de pagar a aposentadoria”, revela o presidente do Instituto de Previdência de Santa Catarina, Adriano Zanotto.
O escândalo também está sendo investigado pelo Ministério Público e pela Receita Federal.
“Pelo menos 16 pessoas, a gente já sabe, que não têm nenhuma doença e que poderiam retornar ao trabalho, estas com certeza serão autuadas e terão que devolver o imposto recolhido nos últimos cinco anos”, destaca Luiz Augusto de Souza Gonçalves, delegado da Receita Federal.
Pelas contas do deputado Jaílson Lima, as irregularidades já custaram cerca de R$ 360 milhões aos cofres públicos ao longo de mais de três décadas.
“Eu vou te dar um cansaço”, fala o aposentado Gaizito enquanto sai.
Fonte: Fantástico
Fonte: Fantástico
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